– Não.
– Não?
– Não. Porque o amor não se sabe, só se sente.
– E como sabes se é amor o que estás a sentir se não sabes o que ele é?
– Se calhar não sei, intuo. Ou talvez chamemos amor àquele estado de superior bem-estar que nos alvoroça e faz sorrir.
– Também faz chorar.
– O amor não. O amor nunca faz chorar. O que nos faz chorar são as circunstâncias, os objectos de afeição ou até o facto de nunca o encontrarmos.
– Nesse caso, o amor nunca depende do outro e vive só em ti. É um sentimento egoísta e indivisível.
– Não percebes nada.
Para sentir o amor são precisas duas bocas.
Têm de estar ávidas exactamente no mesmo grau, ter temperaturas semelhantes e obrigatoriamente encimadas por olhares que se magnetizem e se cruzem tão profundamente que acabem com a alma exposta a correr saliva. E mel.
Para sentir o amor, é preciso sonhar com o ser amado a cada hora, antevendo todas as maravilhas e dedicar-lhe a mais completa devoção. É preciso até deixar de ser, na justa medida de se ser só isso, o amor do outro.
– Portanto, o amor é altruísta?
– Não. É mesquinho, selvagem, facínora e egoísta.
Ao amor não se tire nada sob pena de o matar logo ali. No amor, tudo o que dás, dás por ti, e se a felicidade do outro te é importante é apenas porque dela depende a tua própria. Se pudesses, enfiavas todo o objecto amado dentro de ti, para sempre. Para que nunca te fosse retirado o prazer do vai e vem que te acomete, para que nem o sol beijasse aquela pele, para que à volta dele só houvesse o teu respirar, o teu sangue, o teu cheiro, a tua cor.
– Mas isso é sórdido. É opressor e tirânico.
– Talvez. Mas se eu soubesse o que é o amor, provavelmente te diria que quando ele chega e te derrota com as suas pequenas manhas e danças de corpo, nunca mais serás livre. Terás por vezes a ilusão que o matas, que foges ou te desprendes mas será só isso mesmo, uma ilusão. Uma ilusão mais frágil do que uma colorida bola de sabão.
O amor é como a pele. Ou uma cicatriz na pele, nunca mais sai de ti e são inúmeras as vezes que a tacteias com a ponta dos dedos para perceber a exacta nodosidade. Da mesma forma que apertas o útero à força do que já sentiste ou mordes o lábio inferior na esperança de encontrar nele a boca morna do outro. Assim te deitas para que te sussurre as orações secretas do outro e as revives cada segundo da tua noite e morres e matas se ele já não está. Porque é teu, faz parte de ti e ninguém pode ser feliz sem um membro – terá sempre a amargura e a revolta dos aleijados, mesmo os que voltam a andar.
– E como é que se vive sem um membro?
– Não sei. Mas era miúda para dar um tiro a quem me quisesse arrancar um.
– Depois eras presa.
– O amor é isso.
Deitar fora a liberdade e gostar."
de Patrícia Motta Veiga in 'Maria Capaz'
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